A inteligência artificial promete o fim da música como a conhecemos?
- Lorenza de Lourenzo
- 4 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de mai.
O que a evolução dessa tecnologia representa para a indústria musical, os artistas e o público.
IBM 7094 cantando a música Daisy Bell de Harry Crane. Vídeo: Youtube
A música Daisy Bell (Bicycle built for two), ou apenas Daisy Bell, foi escrita em 1892 pelo compositor britânico Harry Dacre e popularizou-se pela Europa e pela América na virada do Século XIX, sendo performada e regravada por diversos cantores diferentes ao longo das décadas seguidas. Porém, foi em 1961 que a Bell Labs - empresa de pesquisa industrial e desenvolvimento científico fundada por Alexander Graham Bell - utilizou da programação de um sintetizador de fala no hardware e software do computador IBM 7094, e assim, o transformou no primeiro computador a cantar na história, sendo a música, Daisy Bell.
Desde então, a tecnologia tem apenas evoluído e o que antes eram idealizações futurísticas agora são realidades alcançáveis. Com a inteligência artificial (IA), a música encontra novas possibilidades em seu processo de composição, gravação, distribuição, consumo, performance e ensino. Dessa forma, ao ser utilizada como ferramenta, a IA proporciona criações inéditas para a MPB, como a identificação de padrões de composição do gênero musical e a criação de músicas baseadas nessas informações e a restauração de conteúdos que perderam a qualidade ou não foram acabados.

Criação e Composição assistida por IA
A Inteligência Artificial é, às vezes, utilizada como ferramenta de auxílio para a composição de músicas. Em um caso mais recente, Caetano Veloso e IZA fizeram uma regravação de “Divino Maravilhoso” da Gal Costa, usando a IA do Google para implementar ritmos africanos à nova versão. A Dra. Carla Bonato Marcolin, coordenadora do LiA² - Laboratório de Inteligência Artificial Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), disse que a IA ela aprende diferentes padrões, mistura eles e os reproduz em um padrão novo, assim podendo reinventar gêneros tradicionais com sons contemporâneos, possibilitando até uma nova leitura do MPB.
Algumas IAs generativas são capazes de auxiliar na composição e produção de músicas de MPB, criando letras no estilo de grandes musicistas e até gerando arranjos inéditos com influências de músicas brasileiras, baseando-se em prompts gerados por usuários. Em entrevista, o Prof. Dr. André Campos da Faculdade de Música da UFU declarou em entrevista que “Ferramentas como ChatGPT, AIVA ou Jukedeck são uma evolução dos backing tracks, ou seja, uma forma mais atual de contribuir no processo de criação musical para pessoas que não possuem conhecimento instrumental, musical ou de produção musical.”.

Preservação e Restauração de Acervos
O filme “Elis e Tom: Só tinha de ser com você” lançado em 2023, que acompanha os bastidores do processo de gravação do álbum “Elis e Tom” de 1974, por Elis Regina e Tom Jobim, utilizou bastante do uso de IAs para a restauração do som original do álbum, que era constituído de 16 faixas e foi comprimido em 8 quando veio para o Brasil. Em entrevista com a Billboard Brasil, o diretor do filme, Roberto de Oliveira, disse que foi com a inteligência artificial que conseguiram separar algumas faixas de instrumentos que haviam sido comprimidas nas mesmas faixas e perderam a qualidade.
O Prof. Dr. André Campos, coordenador do Núcleo de Música e Tecnologia (NUMUT), ao ser perguntado sobre a capacidade da inteligência artificial de restaurar acervos, respondeu: “Acredito que podemos nos beneficiar enormemente com o auxílio precioso das IA’s para o resgate da obra dos grandes gênios, bem como facilitar o entendimento e análise dos parâmetros composicionais e artísticos de um determinado compositor ou autor". Além disso, ele diz reconhecer que o uso da IA pode automatizar excessivamente os estudos da música na contemporaneidade, porém, ele acrescenta que é comum no processo de evolução de procedimentos que “perde-se em algum parâmetro, mas se compensa em outro aspecto na medida em que alguns procedimentos ou profissões são substituídas por outras especialidades”.

Inteligência Artificial no Ensino de Música
Na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, o uso de inteligência artificial para ensinar música para crianças surdas se tornou uma pesquisa que buscava estabelecer como essa ferramenta tecnológica poderia auxiliar no ensino e aprendizado específico e personalizado, que utilizava de cores e robôs educativos para coordenar o entendimento. Em entrevista, a Prof. Dra. Carla Bonato Marcolin falou, em sua perspectiva como professora, sobre como as IAs são capazes de auxiliar na adaptação dos conteúdos para as diferentes necessidades de aprendizagem dos estudantes.
O Prof. Dr. André Campos, como especialista da área da música, ao abordar o assunto aprofundou-se na condição da música como ferramenta de ensinamento por si só, dizendo “Não vejo isso como sendo um mérito da Inteligência Artificial, mas sim da música como linguagem, como ferramenta de aprendizagem, uma arte social, um apoio terapêutico, e é claro, como uma das principais artes produzidas pela humanidade.”
Dilemas Éticos
Um dilema constantemente debatido é o da qualidade de uma música produzida por IAs comparada à qualidade de uma música produzida por seres humanos, principalmente quando consideram a criatividade e a autenticidade como características inalcançáveis pela inteligência artificial. Quando perguntado sobre sua opinião, o Prof. Dr. André Campos levantou o questionamento: “O fato de algo ser feito por IA não desmerece a qualidade e nem a enaltece, pois os parâmetros de qualidade não estão na ferramenta e sim nos parâmetros que convencionamos para tal. Se a IA for programada corretamente, teve um prompt bem feito e com rigor de detalhes, este já não seria um parâmetro de qualidade?”
Ainda falando sobre autenticidade de algo produzido por uma inteligência artificial, a Prof. Dra. Carla Bonato Marcolin esclarece que a padronização de produção de conteúdo da IA é mais efetiva e menos propensa a erros do que a humana, o que facilita seu caminho no mercado comercial da música. Ao mesmo tempo, ela aborda como essa padronização excessiva pode levar ao desinteresse do público, e em um mercado inovador e sem padrões, a IA encontra maiores dificuldades em estabelecer suas produções.
Conclusão
Por mais que a inteligência artificial apresente todas essas novas mudanças para o cenário da indústria musical, ela ainda é apenas uma ferramenta que depende do uso e controle humano para ser até minimamente funcional. “Um fato, certeza, e isso tem sido um consenso, é que a máquina não nunca é autora sozinha, por uma questão de responsabilidade.[...] Então, se der algum problema ou se isso (Criações feitas por IA) de alguma maneira fere o direito de alguém, alguém precisa ser responsabilizado. [...] Por mais que ele tenha se embasado fortemente na máquina, a autoria continua sendo humana.”, disse a Prof. Dra. Carla Bonato Marcolin, evidenciando que a inteligência artificial não é uma máquina independente que faz o que bem entender quando quiser, ela necessita de um prompt, de parâmetros definidos e até de bancos de dados disponíveis.
Assim, os mais céticos e desacreditados da evolução da tecnologia não precisam se preocupar com os possíveis malefícios, e até benefícios que a inteligência artificial pode proporcionar, já que isso depende completamente da forma como o usuário utiliza a ferramenta. O Prof. Dr. André Campos ainda destacou em sua entrevista que “mesmo diante desse longo processo evolutivo tecnológico ainda temos a necessidade de ouvir nossos músicos favoritos pessoalmente, nos emocionar com as frequências musicais geradas no momento da performance, precisamos nos alimentar da emoção da música em tempo real, chorar com as lembranças e referências musicais afetivas, nos arrepiamos quando ouvimos uma frase melódica sendo executada pelo instrumento musical que amamos nas mãos de nosso ídolo. Isto não tem Inteligência artificial que nos roube”.

Comments